quarta-feira, 13 de abril de 2011

STJ faz justiça

Em junho de 2006, ajuizei uma ação para meu amigo André, de Brasília (um dos personagens do meu livro, inclusive), contra o DETRAN/DF, por conta de duas multas de trânsito que o mesmo cometera, ao levar sua filhinha, que contava com apenas 70 dias de vida, para ser socorrida por conta de queimaduras graves que sofrera.

O DETRAN se negava a suspender o efeito das multas, alegando que o estado de necessidade em que o condutor se encontrava não era motivo para o cancelamento das infrações.

Obtive sentença favorável em primeiro e segundo graus e agora o Superior Tribunal de Justiça definiu o assunto, criando um precedente interessante.
É preciso que as autoridades no nosso país entendam que o direito não pode ser entendido nem aplicado de forma estanque ou compartimentada, devendo - sim - ser aplicado e entendido de forma sistêmica.
Segue abaixo, na íntegra, o acórdão do julgado, publicado na data de hoje.
Parabéns ao STJ pelo belíssimo julgamento. 
Mais um para meu currículo...

______________________________________________


DISPONIBILIZADO EM: 12/04/2011 
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTICA - 13/04/2011 N 790 



RECURSO ESPECIAL N 1.123.876 - DF (2009/0028809-8)
RELATOR:MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES RECORRENTE:DEPARTAMENTO DE TRANSITO DO DISTRITO FEDERAL PROCURADOR:EWERTON AZEVEDO MINEIRO E OUTRO(S)
RECORRIDO :ANDRE LUIS DE ALMEIDA OLIVEIRA 
ADVOGADO:RONALD MIGNONE

EMENTA

ADMINISTRATIVO. TRANSITO. INFRACAO ADMINISTRATIVA. EXCESSO DE VELOCIDADE. ESTADO DE NECESSIDADE. COMPROVACAO NOS AUTOS. EFEITOS DA INFRACAO ADMINISTRATIVA. AFASTAMENTO NA HIPOTESE. POSSIBILIDADE. 
1. Tem-se hipotese em que o veiculo do recorrido foi autuado por duas infracoes de transito, consistentes ambas em excesso de velocidade. O condutor-recorrido nao nega o cometimento das infracoes, mas discute a aplicacao das penalidades, sustentando que cometeu as irregularidades em estado de necessidade (pois levava a filha ao hospital em razao de queimaduras extremamente lesivas a saúde da crianca). 
2. A parte recorrente aduz que a disciplina penal do estado de necessidade nao e suficiente para afastar a incidencia das penalidades, devendo prevalecer o interesse publico geral, consubstanciado na protecao a vida e na garantia de transito em condicoes seguras. Alega-se, ainda, com base no art. 29, inc. VII, alineas "a" a "d", do CTB, que mesmo os veiculos destinados a socorro devem obedecer as regras de transito, razao por que os particulares nao podem deixar de a elas se submeterem tambem. 
3. O estado de necessidade nao e instituto inerente apenas ao Direito Penal; ao contrario, tem-se ai conceito ligado a todo o Direito Sancionador - inclusive nos ramos civel e administrativo. 
4. A figura do estado de necessidade liga-se a ideia de que nao pode existir atentado ao Direito, ao justo, na conduta praticada a fim de salvaguardar bem juridico de maior relevancia que o bem juridico maculado. A logica e evidente: o ordenamento juridico nao pode deslegitimar conduta que e benefica a bem juridico a que ele proprio confere valor diferenciado (para mais). 
5. A legitimidade da conduta, neste caso, deve ser compreendida de forma abrangente, englobando tanto o aspecto penal, como os aspectos civel e administrativo. 
6. Tanto e assim que o Codigo Civil em vigor, na esteira do que ja dispunha o Codigo Civil revogado, dispoe serem licitos os atos praticados em perigo iminente, desde que obedecida a proporcionalidade (em seus tres testes: adequacao, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). 
7. Frise-se: apesar de a sistematica estabelecida pelo art. 188, inc. II e p. un., do novo Codigo Civil nao afastar o dever de reparacao quando a conduta for praticada em estado de necessidade, ainda assim e caso literal de ato licito (observados os contornos do p. unico do dispositivo). 
8. Na esfera administrativa, em razao da inexistencia de codificacao, nao ha dispositivo expresso sobre o instituto. Nada obstante, a construcao de precedentes dos orgaos julgadores da Administracao Publica e dos orgaos judiciais sempre foi no sentido do pleno reconhecimento e da real efetividade do estado de necessidade na seara administrativa. 
9. Neste sentido, por exemplo, nao custa trazer a baila os casos de acao de improbidade administrativa ajuizadas em face de administradores que, apos realizarem o recolhimento das contribuicoes, nao procedem ao devido repasse a Previdencia em razao da necessidade de alocacao das quantias em prol do interesse publico. 
10. Em tais hipoteses, esta Corte Superior, em reiterados precedentes, vem afastando a caracterizacao da improbidade administrativa por considerar configurado o estado de necessidade - da mesma forma como ocorre em relacao aos arts. 2, inc. I, da Lei n. 8.137/90 e 168-A do Codigo Penal -, embora o estado de necessidade nao disponha de previsao expressa na legislacao administrativa. 
11. Mais do que isto, conforme consta do acordao recorrido, existe, no ambito do Detran/DF (recorrente), entendimento segundo o qual,"nos casos de cometimento de infracoes de transito em estado de necessidade, notadamente para atendimentos de urgencias medicas, (ser) apresentada a Guia de Atendimento de Emergencia (GAE)". 
12. Assim sendo, o proprio recorrente reconhece que o estado de necessidade e suficiente para excluir os efeitos das infracoes de transito apuradas, mas condiciona o reconhecimento da excludente a apresentacao da GAE - o que, por certo, viola o direito dos administrados de provarem, por quaisquer meios legitimos, a ocorrencia do estado de necessidade, dada a atipicidade dos meios probatorios. Em resumo: o Detran/DF ja possui orientacao administrativa pela invocabilidade do estado de necessidade como causa excludente das infracoes de transito, havendo apenas discussao quanto aos meios de prova. 
13. Nao custa relembrar tambem os exemplos das grandes metropoles, que, por conta da violencia extrema, liberaram de controle por "pardais" alguns semaforos a partir de determinados horarios, a fim justamente de impedir o perigo a vida dos cidadaos - medida preventiva a perigos eventuais. 
14. Ha ainda o argumento referente ao principio da proporcionalidade. Basta que se proceda ao raciocinio seguinte: apenas uma conduta foi realizada, ou seja, direcao de veiculo automotor a 83 km/h e 121 km/h, em vias cujas velocidades maximas sao, respectivamente, 60 km/h e 70 km/h. Suponha-se que, desta conduta, tenha havido dois resultados: infracao administrativa a legislacao de transito (excesso de velocidade, como na especie) - que, consequentemente, reclamaria sancao administrativa - e infracao penal (e.g., lesao corporal culposa) - sancionavel, em tese, por aplicacao de reprimenda penal. 
15. Seria no minimo, desarrazoado - a nao dizer injusto -, admitir-se que o estado de necessidade se prestaria a excluir uma infracao penal relativa a protecao do bem juridico integridade fisica e, ao mesmo tempo, ser inservivel para excluir uma infracao administrativa, que protege abstratamente a seguranca publica, em razao de uma conduta singular, realizada em tempo, modo e condicoes unicos. 
16. "Exige-se coerencia e unidade de criterios, com obediencia a seguranca juridica, de parte do Estado, quando pretende selecionar comportamentos proibidos e castiga-los. (...) A relacao punitiva, na qual o Estado aparece com seus poderes e o individuo, a pessoa, nao importa se fisica ou juridica, com seus direitos em jogo, ha de ser proporcional. (...) Um dos elementos que permite ao Judiciario o exame da proporcionalidade e, sem duvida, a constatacao de um minimo de coerencia legislativa nos atos sancionadores. Tal exigencia decorre, tambem, da unidade do sistema juridico e dos principios da igualdade e da seguranca juridica. O legislador nao e uma entidade magica, dotada de ilimitados poderes, que nao deve prestar contas aos demais poderes do Estado" (Direito administrativo sancionador, 2005, p. 228/231). 
17. Apesar de a licao doutrinaria se referir aos tipos sancionadores em si, nada impede a sua aplicacao as questoes relativas as excludentes gerais de ilicitude, porque a necessidade de observancia de coerencia decorre da insercao das normas, de quaisquer esferas, em um sistema - no caso, um sistema juridico.
18. Recurso especial nao provido. 

ACORDAO

Vistos, relatados e discutidos esses autos em que sao partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA TURMA do Superior Tribunal de Justica, na conformidade dos votos e das notas taquigraficas, o seguinte resultado de julgamento: "A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator, sem destaque." Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Castro Meira, Humberto Martins (Presidente) e Herman Benjamin votaram com o Sr. Ministro Relator. 
Brasilia (DF), 05 de abril de 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário